Acórdão: Apelação Cível n. 2006.007533-5, de Blumenau.
Relator: Des. Sérgio Izidoro Heil.
Data da decisão: 03.08.2006.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA POR INADIMPLEMENTO C/C PEDIDO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - PRELIMINARES DE CARÊNCIA DA AÇÃO DIANTE DA ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM E AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR - ASSERTIVAS AFASTADAS - INADIMPLÊNCIA COMPROVADA QUANTO AO PAGAMENTO DE DIVERSAS PRESTAÇÕES - CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO FEITA A DESTEMPO E SEM O ACRÉSCIMO DE ENCARGOS CONTRATUAIS E LEGAIS - MORA CARACTERIZADA - RESCISÃO CONTRATUAL MEDIDA INARREDÁVEL - DEVOLUÇÃO DO MONTANTE PAGO - RETENÇÃO E INDENIZAÇÃO POR BENFEITORIAS DESCABIDA - CONSTRUÇÕES EFETUADAS DURANTE O EXERCÍCIO DA POSSE DE MÁ-FÉ - DECISÃO EXTRA PETITA - VÍCIO AFASTADO - SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA MANTIDA - ARRAS - DEVOLUÇÃO DETERMINADA NA FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA - DISPOSITIVO OMISSO - CORREÇÃO EX OFFICIO - RECURSO DESPROVIDO.
Ainda que o inadimplemento, por si só, não caracterize posse de má-fé do comprador, os excessivos gastos com benfeitorias por quem se diz sem condições de pagar os valores pactuados no contrato de compra e venda assim fazem concluir.
É cediço que o parâmetro para fixação da sucumbência parcial não é somente o aspecto pecuniário, mas, considerada a pretensão material como um todo, em quanto cada parte obteve êxito, o que foi observado pela decisão vergastada.
Nada obstante tenha constado, na fundamentação da sentença, a necessidade de devolução das arras pagas, tal determinação não constou de seu dispositivo, omissão que ora se corrige, ex officio.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2006.007533-5, da comarca de Blumenau (4ª Vara Cível), em que é apelante Ricardo Alexandre dos Santos, sendo apelada Patrícia Maria Cuneo:
ACORDAM, em Terceira Câmara de Direito Civil, por votação unânime, conhecer do recurso para afastar as preliminares e, no mérito, negar-lhe provimento e, de ofício, sanar a omissão existente na sentença vergastada.
Custas na forma da lei.
I -RELATÓRIO:
Trata-se de recurso de apelação interposto por Ricardo Alexandre dos Santos, diante da sentença proferida pelo Dr. Juiz de Direito da 4ª Vara Cível da comarca de Blumenau que, nos autos da ação rescisão contratual c/c reintegração de posse n. 008.03.019398-0, ajuizada por Patrícia Maria Cuneo, julgou parcialmente procedente o pleito, decretando a rescisão do contrato particular de compra e venda, determinando a reintegração da autora na posse do imóvel, bem como condenando o réu ao pagamento de indenização pelo uso do imóvel, a ser apurada em liqüidação de sentença e ao pagamento de 75% (setenta e cinco por cento) dos honorários advocatícios, estes fixados em 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa (fls. 122/132).
Inconformado com a prestação jurisdicional, o réu interpôs recurso de apelação contra o decisum, asseverando preliminarmente, em síntese, que: há carência da ação diante da ilegitimidade ativa da parte autora, uma vez que não é ela a proprietária do imóvel e não possui procuração que lhe outorgue poderes para a proposição da ação; ausência de interesse processual, já que o réu não foi constituído em mora, até porque houve a consignação dos valores ditos inadimplidos; não houve pedido da parte para condenação do réu em perdas e danos, sendo a sentença extra petita. No mérito, alega o apelante que: o juiz deveria ter considerado os valores já depositados na consignação em pagamento, visto que a soma deles resulta na quitação da quantia devida, sendo descabida a rescisão do contrato; era possuidor de boa-fé e como tal possui direito de ser ressarcido pelos valores despendidos com benfeitorias; a condenação em honorários deve ser minorada, já que a autora decaiu em mais de 50% (cinqüenta por cento) do seu pedido (fls. 141/154).
As contra-razões foram apresentadas às fls. 192/204.
É o relatório.
II -VOTO:
Insurge-se o recorrente contra a decisão do Juiz a quo que julgou parcialmente procedente a ação de rescisão contratual cumulada com reintegração de posse.
Preliminarmente, argüiu o recorrente a ilegitimidade ativa da parte apelada, tendo em vista que ela não é proprietária do imóvel e a procuração juntada por ela não lhe outorga poderes para tanto.
No compulsar dos autos verifica-se que efetivamente os proprietários do imóvel em litígio são Dirceu Loos, Adriana Maria Knaul e Marcos Leyen (fls. 14/17); entretanto, tais proprietários outorgaram procuração em favor de Patrícia Maria Cuneo, ora apelada, para exercer inúmeros atos em nome deles, sendo inclusive lhe possibilitado propor ação, o que se retira do documento de fl. 13:
"[...] podendo para tanto dito (s, a, as) procurador (es, a, as) assinar a (s) competente (s) escritura (s), contrato (s) ou cessão (es), transferir domínio, ação, posse, direito e senhorio, [...], enfim, praticar todos os demais atos necessários ao fiel e cabal cumprimento do presente mandato, mesmo os que não totalmente expressos na presente, podendo inclusive substabelecer" (fl. 13 e verso).
Ora, está claro que a parte recorrida possui poderes para propor a ação em nome dos legítimos proprietários do imóvel, não havendo qualquer nulidade a ser declarada.
A prefacial seguinte se refere à carência da ação também por ausência de interesse de agir, já que a parte não foi constituída em mora, nem por notificação judicial, ou extrajudicial.
É de se ressaltar que tal omissão restou suprida quando da perfectibilização da citação no presente feito, não podendo se cogitar em nulidade a ausência daquela, até porque, com esta - citação válida -, constituíram-se em mora.
A respeito, já se manifestou esta egrégia Corte:
"APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - PRELIMINAR - NOTIFICAÇÃO PARCIAL - DEFEITO SANADO PELA CITAÇÃO VÁLIDA - EXEGESE DO ART. 219 DO CPC - REJEIÇÃO.
A citação válida torna despicienda a notificação prévia, afastando a carência de ação, conforme estabelece o art. 219 do Código de Processo Civil" (AC n. 2005.009866-0, de Içara, rel. Des. Wilson Augusto do Nascimento, j. 03.06.05).
Ademais, a ação de consignação em pagamento por si só não impede a configuração dos efeitos da mora, os quais somente serão suspensos, através da purgação, através do depósito do valor integral a ser discutido.
In casu, não houve o pagamento integral da quantia devida, porquanto efetuado a destempo e sem os encargos legais, assim, totalmente aceita a constituição da mora tanto pelo inadimplemento quanto pela citação da parte na ação de rescisão de contrato proposta posteriormente.
Afasta-se, portanto, as preliminares.
No mérito, quanto à assertiva de que o juiz deveria ter considerado o depósito já realizado na consignação, para reputar a obrigação como adimplida, tornando descabida a rescisão contratual, é totalmente inócua.
Ora, da análise dos autos, observa-se que, como já dito, os depósitos foram todos a destempo, já que realizados sempre após o vencimento das promissórias e em intervalos longos, sem os correspondentes encargos contratuais e legais.
O magistrado sentenciante julgou improcedente a ação de consignação exatamente por que não foram cumpridos os requisitos do art. 974 do Código Civil de 1916 (art. 336 do atual Código Civil), ou seja, para considerar os depósitos como pagamento indireto, a consignação deve ser: "livre, não estando sujeita a condição que continha restrição injusta ao direito do credor; completa, abrangendo a prestação devida, juros, frutos e despesas; e real, ou seja, efetiva, mediante exibição da coisa móvel ou imóvel (mediante entrega das chaves), que é objeto da prestação" DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 343/344.1.
Assim, não há como considerar os valores depositados como sendo o pagamento da obrigação devida.
Tocantemente às benfeitorias, o apelante frisa que não é possuidor de má-fé, uma vez que há um contrato de compra e venda entre as partes e este lhe assegura a boa-fé.
Inicialmente, cabe dispor o conceito que o Código Civil adotou para a posse de boa-fé e, em conseqüência, para o de má-fé:
"Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa".
Do ponto de vista do doutrinador Sílvio de Salvo Venosa, embora os críticos sustentem que o legislador criou aspecto objetivo à conceituação de boa-fé na posse, as dicções legais fazem o caso concreto depender sempre do exame da vontade do possuidor (in Direito Civil: direitos reais. 5. Ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 83).
Ora, assim, temos que examinar no caso concreto se o possuidor ignora ou não o vício da posse.
No caso de que tratam os autos, concluiu-se que o apelante, tanto tinha conhecimento do vício consistente no inadimplemento das parcelas que propôs ação consignatória para tentar modificar a sua situação quanto à obrigação assumida perante a parte contrária.
Muito embora entenda-se que aquele que possui com justo título a coisa terá também a presunção de boa-fé a seu favor, sabe-se também que se trata de presunção relativa, ou seja, aceita-se prova em sentido contrário.
Destarte, ainda que o inadimplemento por si só, não caracterize a posse de má-fé do apelante, os excessivos gastos com ditas benfeitorias (fls. 69/74), a uma pessoa que se diz sem condições de pagar os valores pactuados no contrato de compra e venda (fls. 14 e 16) demonstram sua má-fé, pois, ainda não sendo o legítimo proprietário, tenta se valer de um justo título para ensejar sua boa-fé e praticar atos exacerbados.
Não bastasse isso, como também salientou o Togado de Primeiro Grau, na mesma época em que o apelante estava inadimplente, despendeu vultosos gastos para a melhoria do imóvel (fl. 128), não podendo valer-se do argumento de dano irreparável por ter realizado tais benfeitorias, sequer por sua família lá residir, pois deixou de se preocupar com seu bem-estar a partir do momento em que tornou-se inadimplente e passou a correr o risco de inclusive ter o seu contrato rescindido, com a conseqüente perda da posse do bem.
Portanto, caracterizada a posse de má-fé, resta manter a sentença, indeferindo o pedido de indenização pelas ditas benfeitorias realizadas.
Da jurisprudência, retira-se:
"MANUTENÇÃO DE POSSE. COMPROVADA A AUSÊNCIA DE JUSTO TÍTULO E A PRECARIEDADE DA POSSE, DECORRENTE DE ESBULHO, NÃO SE DEFERE A PROTEÇÃO POSSESSÓRIA. A MÁ-FÉ AFASTA O DIREITO DE RETENÇÃO E INDENIZAÇÃO DAS BENFEITORIAS (CC. ART. 517). 1. A proteção possessória é deferida àquele que comprovou justo título e a posse, e não a quem a esbulhou, tentando de má-fé legitimá-la. 2. A má-fé afasta o direito de retenção e indenização, considerando-se, sobretudo, que inexistem benfeitorias necessárias (CC: art. 517). 3. Apelação não provida" (TRF 01ª R.; AC 01000555836; AP; Rel. Juiz Conv. Carlos Alberto Simões de Tomaz; Julg. 05/09/2002)
A lei civil pune a má-fé do possuidor, através do art. 517 do Código Civil, impedindo a ele o direito de retenção e a indenização pelas benfeitorias úteis e voluptuárias, possibilitando-lhe, apenas, o ressarcimento pelas necessárias.
Entretanto, da análise probatória, conclui-se que muito embora a parte recorrente tente demonstrar a existência de benfeitorias necessárias, os documentos juntados (fls. 51/74) não foram suficientes para tanto, ônus que cabia ao apelante, na forma do art. 333, III, do Código de Processo Civil.
Dos julgados desta corte, colhe-se:
"CIVIL - REIVINDICATÓRIA - RESIGNAÇÃO COM RELAÇÃO À PROCEDÊNCIA DO PLEITO PETITÓRIO - INSURGÊNCIA RECURSAL QUE SE CINGE AO DIREITO DE RETENÇÃO POR BENFEITORIAS - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA ALEGADA POSSE DE BOA-FÉ E DA REALIZAÇÃO DAS EDIFICAÇÕES - INTELIGÊNCIA DO ART. 333, II, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ DO RÉU NÃO CONFIGURADA - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO
"Não se pode pleitear direito à retenção com base em benfeitorias ou acessões quando inexistem provas a confirmar a autoria das edificações existentes no imóvel, objeto do litígio" (AC n.º 1998.006807-0, Juiz Dionízio Jenczak) (Apelação Cível n. 2005.007306-0, de Criciúma. Rel.: Des. Marcus Tulio Sartorato, j. em 20/04/2006).
Deste modo, além de o possuidor ser de má-fé, já que estava construindo em um imóvel cujo pagamento que não estava honrando, não há prova de que tais obras fossem imprescindíveis para o bom funcionamento do bem e para a sua conservação.
Em relação à assertiva levantada pelo apelante a respeito da sua condenação em perdas e danos, vez que não houve pedido da parte apelada neste sentido, tornando a decisão extra petita, não merece acolhida.
Prima facie, é de se salientar que o vício, se contido na sentença, tecnicamente, mereceria ser classificado como ultra petita, porquanto superior - e não diverso - do que aquilo do que foi pedido.
Entretanto, da inicial se colhe o pleito pela "condenação do réu ao pagamento, a título de aluguel mensal, no valor de R$ 800,00 (oitocentos reais) mensais, desde 02 de dezembro de 2002 até a data da efetiva desocupação do imóvel" (fl. 10).
Bem procedeu o Magistrado sentenciante ao, no dispositivo, "CONDENAR o réu ao pagamento de indenização pelo uso indevido do imóvel, a ser apurada em liquidação de sentença, com base no aluguel médio do período, a contar da ocupação (02.12.02), até a efetiva entrega das chaves", em absoluta atenção ao pleito supra citado.
Ora, a título de argumentação, o fato de se tratar, na fundamentação da sentença, em "perdas e danos" e, tópicos à frente, em "aluguéis", não pode ser interpretado com o azo de dar à sentença o alcance sobre quaisquer outras verbas estranhas aos aluguéis, como afirmou a apelada, em suas contra-razões.
Quanto ao percentual firmado às partes a título de sucumbência, também não tem razão o apelante, porquanto é cediço que o parâmetro para fixação da sucumbência parcial não é somente o aspecto pecuniário, mas, considerada a pretensão material como um todo, em quanto cada parte obteve êxito, o que foi observado pela decisão vergastada.
Há que se fazer uma última ressalva.
Nada obstante tenha constado, na fundamentação da sentença, a necessidade de devolução das arras pagas pelo apelante (fl. 127), tal determinação não constou de seu dispositivo.
Trata-se de omissão que pode e deve ser corrigida de ofício, mesmo em Segundo Grau, como se conclui dos seguintes julgados pátrios:
"(...) é passível de correção por meio de embargos de declaração, ou mesmo de ofício pelo Juízo, a omissão existente no dispositivo que não menciona a exclusão da parte ilegítima" (TRF 02ª R.; AC 96.02.03621-4; Sexta Turma; Rel. Juiz Franca Neto; DJU 01/07/2004; Pág. 133).
Mais:
"A divergência entre a fundamentação e o dispositivo configura erro material corrigível, até mesmo de ofício, a qualquer tempo" (TJ-PR; EmbDecCv. 0051650-9/01; Ac. 2156; Curitiba; Quinta Câmara Cível; Rel. Juiz Conv. Rogério Coelho; DJPR 22/12/1997).
Assim, a fim de evitar eventual discussão na fase de liqüidação de sentença, corrige-se, ex officio, tal omissão, a fim de fazer constar no dispositivo a compensação do sinal pago, devidamente corrigido, do montante apurado a título de perdas e danos.
Diante do exposto, vota-se pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
III -DECISÃO:
Nos termos do voto do relator, a Câmara, à unanimidade, conheceu do recurso para afastar as preliminares, e, no mérito, negou-lhe provimento, e, de ofício, sanar a omissão existente na sentença vergastada
Participou do julgamento o Exmo. Sr. Desembargador Marcus Tulio Sartorato.
Florianópolis, 03 de agosto de 2006.
Fernando Carioni
PRESIDENTE COM VOTO
Sérgio Izidoro Heil
RELATOR
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